Estava no 3º ano do primeiro ciclo. Devia ter uns 8 ou 9 anos. Era o meu primeiro dia naquela escola. Aproximei-me do grupo de rapazes e raparigas que se tinha juntado na lateral do pavilhão da sala de aula. Queria fazer amigos. Assim que perceberam que me aproximava, apontaram o dedo para as calças de xadrez que trazia vestidas e, às gargalhadas, gritaram: “Sai daqui, oh calças de palhaço!” Nunca mais me esqueci disto. Lembro-me do sítio, lembro-me das caras, do gozo e do som alto do riso conjunto. Lembro-me da vergonha, da cara a arder e da vontade incontrolável de chorar, enquanto fugia dali, aos tropeções. Lembro-me, também, de odiar as malditas calças de xadrez que me tinham vestido naquela manhã. E sei hoje que, acaso aquela manhã se tivesse repetido e se tivesse colado a mim, eu teria aprendido também a odiar a pele por baixo das calças, o corpo, a voz, a vontade de me aproximar dos outros e de os tornar um pouco meus meus. Teria, por fim, aprendido a odiar quem sou.
As sensações que aqui recordo deste dia, que felizmente não se repetiu, tornam-me mais próxima, outra vez, de quem sofre com isto na escola todos os dias. Os miúdos que conheço, as famílias com quem trabalho e claro, a experiência da maternidade, fazem-me compreender como nunca, o medo e a dor de perceber que um filho ou filha carrega este peso dentro, que tanto altera a noção de quem somos e a forma como nos amamos ou nos sentimos também dignos de amor.
Bullying é a expressão usada para definir os comportamentos agressivos, intencionais e repetitivos (ou com potencial para a repetição), entre crianças e jovens em idade escolar. Manifesta-se através de um desequilíbrio de poder entre quem agride e entre quem é agredido e inclui comportamentos como insultar, gozar, espalhar boatos, excluir, agredir fisicamente, entre outros.
Contrariamente ao que tantas vezes ouço dizer,
O BULLYING NÃO ESTÁ NA MODA!
Está na moda falar-se sobre ele e ainda bem. E é a falar sobre o assunto que conseguimos estar mais atentos, mais despertos, que podemos ser mais empáticos, mais solidários, mais interventivos, nesta responsabilidade conjunta, de tornar seguros e mais felizes, os espaços escolares.
E se à escola cabe a tarefa de envolver todos os elementos da comunidade escolar: professores, educadores, assistentes operacionais, alunos, técnicos psicossociais, enfermeiros de saúde escolar… na criação de estratégias promotoras da saúde e preventivas de todas as situações de violência escolar, aos pais cabe a dura tarefa de apanhar os cacos e de ajudar a reparar a auto-estima, transmitindo a esperança e a certeza de que a vida não tem de ser assim.
Importa por isso e ainda que nunca tenhamos enfrentado este desafio, refletir sobre o assunto e definir, de uma forma prática, como é que podemos ajudar…
- Mantendo a calma.
A forma como reagimos à situação é determinante na forma como os nossos filhos a encaram. Demasiado nervosismo, ansiedade ou indignação, podem afastá-los e impedir que voltem a falar sobre assunto, o que pode ser motivado pela culpa que sentem por serem fonte de preocupação. É importante também escolher o momento para abordar o assunto, de forma a que estejam, o mais possível, tranquilos e num espaço em que se sintam seguros. Evitar os momentos logo à chegada da escola, deixando-os recuperar e descansar na sensação de porto seguro que somos, contribui para que se sintam mais tranquilos e disponíveis para conversar.
- Sendo empática/o.
De todas as formas de apoiar uma criança ou adolescente que é agredido, a mais importante é aquela que lhe permita sentir que o compreendes e que o teu apoio será sempre incondicional. Resiste por isso à tentação de fazer todas as perguntas de forma imediata. Acolhe e deixa que partilhem todas as respostas que lhe vêm à mente. Só assim entenderás o que verdadeiramente por lá se passa.
- Procurando obter mais informação em relação à situação específica.
Depois de aceitares e ouvires o que lhes vai na alma, existem informações que são importantes e que, ao ritmo deles e com a calma necessária, podem ser fundamentais na definição da melhor abordagem à situação. Se possível, procura compreender o contexto em que a violência aconteceu: com quem estavam, onde estavam, o que aconteceu antes, quem assistiu, o que aconteceu depois. É fundamental também estimular a partilha da forma como se sentiram, o que foi mais difícil e se houve alguma coisa que contribuísse para que se sentissem melhor. Perguntas como: “Como te sentiste?” ou “Sentiste-te triste, humilhado, zangado…?”, ao invés de “Sentiste-te triste?”, dá-lhes mais espaço a que se identifiquem com as diferentes emoções possíveis.
- Trabalhando as competências necessárias para que aprendam a lidar com desafios semelhantes.
Criar situações fictícias, imaginando em conjunto respostas possíveis e antecipando consequências para cada uma delas. É fundamental fazer sentir que o bullying é uma situação difícil de lidar, mas que não é impossível fazê-lo e haverá sempre alternativas para lidar com a situação. Trabalhar competências ligadas à auto-confiança, à comunicação, à assertividade, à diferenciação emocional, à resolução de problemas, permitirá que se sintam mais confortáveis e confiantes nas relações sociais. Ajudar a obter mais informação, demonstrando que é uma situação que pode acontecer a qualquer um e que é preciso compreender e apoiar vítimas, agressores e espectadores, numa atitude preventiva da reicindência, contribui para que não se sintam sozinhos e desenvolve uma maior consciência social e empowerment na resolução dos conflitos. Incentivar a que se envolvam em atividades fora da escola, permite que treinem estas competências e que procurem suporte social no estabelecimento de outras relações de amizade e de grupo.
- Estimulando ao desenvolvimento de uma perspectiva positiva do espaço escolar.
Depois de sabermos que isto se passa ou passou com o nosso filho ou filha na escola, podemos ter mais dificuldade em sair do estado de alerta e com isso centrar todos os temas de conversa nesta questão. É fundamental trazer à tona os sentimentos positivos, as pessoas de quem se gosta, as aprendizagens e as conquistas proporcionadas pelo dia a dia na escola, de forma a que sintam que há muito mais por que lutar e acreditar, do que a situação de mal estar e agressão.
- Sendo parceira/o da escola na resolução do problema.
Marcar uma reunião com a direção ou o professor responsável pela turma, tornar comuns as preocupações que tens e, de acordo com o conhecimento que o professor tenha em relação ao funcionamento do grupo e às características dos miúdos envolvidos, definir em conjunto a melhor estratégia para atuar. É importante que o teu filho/a saiba que esta reunião se realizará e que compreenda a sua importância na resolução do problema. Sempre que sintas que as medidas adoptadas e apoio familiar e escolar não estão a ser suficientes para resolver a situação ou sempre que notes uma ansiedade crescente ou comportamentos de maior isolamento e tristeza, procura apoio e aconselhamento junto dos serviços de psicologia da escola, ou externamente.
O bullying acontece todos os dias, em todas as escolas, com os nossos filhos ou com os filhos dos outros. Passa-se na sala de aula, nos balneários, na cantina, no recreio. E alimenta-se do nosso silêncio, das vezes em que fazemos de conta ou daquelas em que achamos que o assunto não é connosco.
Será sempre, tal como é nossa, a responsabilidade de impedir que alguma criança ou jovem, um dia, se sinta assim:
“Parece que passam sem ver-me os instantes
mas passam sem que o seu passo seja breve.”
Álvaro de Campos