“Isso não é para brincar!”

Começo assim…
 
O Manel devia ter uns 2 anos. Estávamos numa feira de artesanato e parámos numa tenda cheia de caixas e caixinhas carregadas de missangas, pedras semi preciosas, estatuetas pequeninas de madeira…
 
Ele, encantado com as cores e o brilho à nossa volta tocava em tudo e enterrava as mãos sapudas dentro de todas as caixas de contas e continhas. Eu, aterrada, pedia-lhe: – Não mexas querido. Só podemos ver.
 
Andei nesta aflição, em modo helicóptero, durante uns minutos, até que ouvi alguém dizer do canto da tenta e com a voz mais bonita do mundo,
 
– Menina, as crianças conhecem as coisas, tocando-lhes.
 
Era senegalesa e trazia, na suavidade da voz, a soberania de não esquecer de que substância de faz uma criança.
 
E a substância de uma criança mora na forma sábia como lê o mundo, com honestidade, curiosidade, coragem e bondade sem fim. Faz-se, também, da procura constante daquilo que verdadeiramente lhe alimenta a alma e que está, tantas vezes, na sua fome de brincar. E é a brincar que tenta, incansavelmente e com a seriedade que o assunto merece, ensinar-nos a nós, adultos, a viver outra vez.
 
O problema está naquilo que fazemos com os sinais que as crianças nos oferecem, nas vezes em que fingimos não ouvir ou ignoramos o apelo e, sobretudo, nas vezes em que esquecemos o cerne da questão e deixamos que nos saia da boca a frase fácil: “Isso não é para brincar.” E eu, que provavelmente ouvi esta frase a vida inteira, sem lhe dar a devida atenção, tenho agora o privilégio de aprender com quem faz do brincar motivo de vida e com isso percebo, que a ouço vezes demais. Não me resta senão mastigá-la e regurgitá-la enjoada, acendendo em mim a certeza de que há coisas que não deviam mesmo ser ditas, de tão disparatadas que são, nas situações como as que se seguem…
 
A criança explora as caixas de brinquedos na prateleira do supermercado. Nós: “Isso não é para mexer (brincar)!
 
A criança equilibra-se num muro do jardim. Nós: “Isso não é para andar aí em cima (brincar)!”
 
A criança desmonta a porta da casinha de brincar. Nós: “Isso não é para fazer (brincar)!”
 
A criança empilha um monte de livros na biblioteca. Nós: “Isso não é para desarrumar (brincar)!”
 
A criança sobe a uma árvore. Nós: “Isso não é para trepar (brincar)!
 
A criança desce sentada o corrimão das escadas. Nós: “Isto não é para escorregar (brincar)!”
 
A criança corre no corredor livre da escola. Nós: “Aqui não é para correr (brincar)!”
 
A criança mexe na terra, à procura de bichos de conta. Nós: “Isso não é para andar a meter as mãos (brincar)!
 
CARAMBA!
 
Parece-me compreensível que se diga a uma criança que não se brinca com facas afiadas ou que não se brinca com fogo (e ainda assim o mundo está cheio de malabaristas e de faquires extraordinários), mas é só disto que, honestamente, me lembro.
 
Tudo o resto é para ser mexido, transformado, explorado, trepado, conhecido, escorregado, descoberto, partido, desmontado, reinventado… E é bom que assim seja, é assim que se cresce e é aí que se compreende, afinal, onde reside a magia de brincar: escancarar a janela do conhecimento, puxar o lustro ao pensamento divergente e estimular a criatividade, experimentando-a.
 
Quando as crianças brincam, descobrem o mundo, dão-lhe sentido e expressam a forma como o sentem e como se sentem nele. É através da atividade lúdica que se gravam na memória as aprendizagens mais importantes, aquelas que se revelarão fundamentais pela vida fora e que facilitarão, no futuro, a relação com o meio, a criação de vínculos afetivos, a interação social, a cooperação e a resolução de problemas, materializando quem somos e experimentando as fronteiras do possível e a liberdade da imaginação.
 
É por isso urgente, entender de uma vez por todas, que brincar é um assunto sério, trazendo esta consciência para dentro de casa, para os cafés, para os bairros, para os jardins, para as escolas, sobretudo para as escolas…
 
Porque se houve em tempos quem, de forma tão sagaz, nos tirasse a pinta assim:
 
“Os adultos adoram números. Sempre que falamos aos adultos de um amigo novo, nunca perguntam o mais importante. Nunca dizem: “Como soa a sua voz? De que jogos gosta? Coleciona borboletas?” Em vez disso perguntam: “Quantos anos tem? Quantos irmãos? Quanto pesa? Quanto ganha o pai dele?” E só então parece que o conhecem. Se disserem aos adultos “Vi uma casa muito bonita de tijolos cor de rosa, com gerânios nas janelas e pombas no telhado…”, eles não conseguem imaginar a casa. Mas se lhes dissermos “Vi uma casa de 200 mil euros!” Então eles exclamam: “Tão bonita!” *
 
… continuará felizmente a existir, uma mão pequenina e esperta, que nos corrige o olhar, nos aponta para o sítio certo e nos garante, num sorriso feliz, que nunca é tarde para voltar a ver os gerânios nas janelas. São tão mais bonitos do que os números… ❤
 
*excerto retirado de “O Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry.
 

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Eu, Rita.

Sou psicóloga e formadora com especialidade na área da saúde e da educação e trabalho como psicóloga escolar desde 2006, atividade que muito me preenche e me faz acordar todas as manhãs cheia de energia e vontade de continuar a aprender.

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