Disse-me, finalmente, depois de um silêncio ensurdecedor: “Eu não posso ir à escola porque não posso ir à casa de banho.”
Tentei disfarçar o aperto no peito e pensei: “Merda. Tu não sabes o que isso é!”
Tu não sabes o que é não saber a que casa de banho deves ir (ou melhor, saber, mas não poder fazê-lo com medo de que os outros não o saibam).
Não sabes o que é ouvi-los chamarem por ti, num nome que não queres ouvir.
Tu não sabes o que é menstruar todos os meses e saber que os rapazes não menstruam.
Não sabes o que é esmagar as mamas todas as manhãs com cinco camadas de tops, três números abaixo do teu, e ficar sem respirar o dia inteiro.
Não sabes o que é tomar banho de olhos fechados e despejar o gel diretamente do frasco para cima da pele, só para não teres de ver ou tocar o teu corpo nu.
Tu não sabes o que é ter toda a gente a falar sobre ti, justificando-te com os problemas em casa ou na escola ou com os amigos, sem nunca ninguém falar do único problema que tens.
Não sabes o que é ver a estranheza nos olhos dos outros e o tatear desajeitado na forma como se dirigem a ti.
Não sabes o que é olhar ao espelho, vezes e vezes sem conta, e nunca, em nenhuma delas te chegares a encontrar.
Tu não sabes o que é estar preso num corpo que não é o teu e quase desistir de falar com alguém, porque ninguém saberá do que falas.
Tu não sabes. Poucos sabem. Mas ELE sabe.
O termo pessoas transgénero integra todas as pessoas que vivem uma discordância entre a identidade ou expressão de género e o sexo atribuído à nascença, definido com base na observação do seus genitais. Falamos, por exemplo, de alguém com uma identidade de género masculina, mas que nasceu mulher, ou vice versa. Falamos de alguém cujo sentir de quem é, não se cumpre naquelas que são as expectativas e normas sociais que se desenham e alimentam pelos outros, ao longo da vida, exclusivamente a partir do sexo identificado desde a gravidez e/ou nascimento.
Falar de crianças e jovens transgénero neste país é ainda falar muito pouco, e tantas vezes mal. É ainda ouvir dizer, lá longe, sobretudo em relação aos filhos dos outros, que a Joana sempre foi maria rapaz ou que o Luís tem andado confuso. É alimentar silêncios, treinar a invisibilidade e agarrar-se à ideia de que se possa ser só uma fase, como se essa esperança, de um colete salva vidas se tratasse. É baralhar tudo e achar que identidade de género e orientação sexual são duas faces de uma mesma moeda e que o que é preciso mesmo é que ela tenha uma boa experiência com um rapaz para que isto tudo lhe passe.
Ser criança ou jovem transgénero nas escolas deste país ainda é ouvir todos os dias, várias vezes por dia, chamar um nome que não é o teu e ter de responder baixinho: “Presente”. É ter de inventar mil desculpas para não fazer a aula de Educação Física porque te esperam na equipa faminina, sempre que gritam: “Filipa ao campo!”. Ou porque acham que é preguiça, abrandar o passo na corrida, quando afinal só há falta de espaço no peito, não para correr, mas para respirar (pudesses tu correr para algum lado, aposto que não quererias senão, correr dali…). E depois vem o balneário, e os chuveiros sem porta e a vergonha e os olhares… Às vezes, vem até o medo.
E depois vêm os pais e os professores e os psicólogos e as avaliações e as sugestões, até que existe um dia em que finalmente se consegue dizer o que nos vai dentro ou em que alguém consegue entender aquilo que precisa de ser ouvido.
E é a partir desse dia que estas crianças e jovens passam novamente a existir em que todos à sua volta podem aprender, integrar e construir uma escola e um mundo em que todos (e cada um) podem experimentar, explorar, conhecer e construir a pessoa que são, sem olhar à pessoa que todos desejam que seja.
Falta muito ainda, mas já começámos o caminho e o que é mesmo preciso é continuar a lutar para que os direitos das pessoas LGBTI, ou melhor, para que os Direitos Humanos, não se fiquem no papel mas antes passem para a mesa do café, para a fila do supermercado e para a carteira da sala de aula, para a voz e para o corpo. Para todo o lado e por todo o lado.
Não é a Joana que é maria rapaz ou o Luís que tem andado confuso. Somos nós. Somos todos nós que andamos a precisar de entender que a diversidade da sexualidade não se encerra no entendimento binário de sexo e de género. Somos nós que andamos, sobretudo, a precisar de sentir.
Como?
Imagina o que sentirias se um dia te deitasses como mulher e acordasses num corpo de homem. Imagina agora que até podia ser assim desde o momento em que lembras de ti como gente.
Conseguiste? Pois bem, é mais ou menos isso…
Para saber mais e procurar apoio:
AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género
ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo
Rede Ex Aequo – Associação de Jovens LGBTI e apoiantes
APF – Associação para o Planeamento da Família