“Miúdos, pra a rua já!” – Ideias para proteger a criatividade e a liberdade na infância.

Uma das perguntas que invariavelmente faço aos pais com quem trabalho é a seguinte:

Qual é a recordação mais feliz da vossa infância?

O propósito da pergunta (para além do convite a uma viagem no tempo), cumpre-se na riqueza das respostas: “Ahhh, eu lembro-me dos verões em casa dos meus avós. De passar o dia metido em sarilhos com os meus primos mais velhos…” ou, “E o que eu gostava de subir à árvores e correr atrás das galinhas!” ou ainda “Morávamos ao pé da praia e eu ficava horas a construir castelos de terra molhada e a escavar fossos gigantes à volta capazes de resistir à onda seguinte!” e às vezes um delicioso, “Lembro-me sobretudo da liberdade para ser criança…”

As recordações mais poderosas da nossa infância metem árvores, metem terra, água, amigos, sarilhos, superação e sensação de liberdade. E acho que isto nos basta para trazer à tona os ingredientes necessários para ajudar a crescer uma criança feliz, autónoma, a manter-se criativa e a saborear a incrível sensação de liberdade de que os pais tantas vezes me falam.

Acontece que a vida, a organização das sociedades, o progresso tecnológico, o mundo como o conhecemos hoje e os nossos medos a crescer na devida proporção do avanço das coisas (ou quem sabe, do seu recuo), nem sempre nos facilitam este retorno à infância naquelas que podem ser as experiências dos nossos filhos. Acredito por isso que é hoje preciso, mais do que nunca, uma dose extra de esforço e de vontade para fazer acontecer aquilo que é efetivamente importante aos nossos filhos: tempo, espaço e liberdade de ser.

A rua já não é como foi (ou nós já não a olhamos como dantes), as árvores estão cada vez mais distantes e a vida corre frenética à nossa frente, sem que tenhamos tempo de a olhar como merece. Todos sabemos disto, até porque todos o sentimos na pele todos os dias e é por isso que eu te peço que, antes de continuares a ler este texto, te encostes na cadeira, respires fundo, feches os olhos e voltes a esses momentos em que te sentiste uma criança incrivelmente feliz. Agora, sugiro que mantenhas essa sensação boa no coração e leias as sugestões seguintes, acreditando que isso te ajudará a firmar a vontade e a não desistir:

Permitir-lhes o tempo e o espaço para não fazer nada.
A maioria dos miúdos de hoje cresce a reboque do horário preenchido dos pais. Às oito horas de escola, seguem-se mais três horas de ATL, ou mais três horas de explicação, para depois terminar o dia com mais uma hora de ginástica, ou ballet, ou violino ou mandarim (ou “o raio que o parta”, que é o que às vezes me apatece dizer…) No dia seguinte a história repete-se, no que se segue também e assim por diante, até que seja sexta-feira e já não reste mais espaço por preencher. Às vezes até se aproveita o fim de semana para mais uma horinhas de explicação ou para treinar mais um pouco e quando damos por nós, o despertador acorda-os à sete da manhã para começar tudo do início. E aqui pergunto-me: Será mesmo início, se não chegou a ter fim?
Pareceria uma ideia fácil, esta de permitir tempo aos nossos filhos para brincar, se é precisamente para a atividade de brincar que eles estão altamente apetrechados, mas a verdade é que isto se tornou um verdadeiro desafio às famílias de hoje. Tentar chegar a casa mais cedo pelo menos alguns dias da semana para que possam brincar depois da escola, assumir o compromisso de não ter agenda ao fim de semana ou incentivá-los a brincar de manhã enquanto acabamos de nos despachar, ao invés de ligar a televisão nestes minutos preciosos, podem ser ideias que ajudem a recuperar este tempo que lhes é de direito.

Deixá-los em paz!
Os pais são peritos em meter-se nas brincadeiras dos filhos a achar que sabem eles, melhor do que os próprios especialistas, qual a melhor maneira de montar um puzzle, quais as regras que fazem sentido num jogo de grupo ou até como se deve pintar o céu para ficar ainda mais bonito. Somos tão bons nisto que até apelidamos de “brincadeiras não estruturadas”, aquelas em que não metemos o bedelho.
Não existem brincadeiras não estruturadas porque todas as crianças definem e aplicam as regras da sua própria brincadeiras sem precisarem de nós para absolutamente nada. E portanto, deixá-los gerir estes espaços de criatividade e atividade lúdica, não desatar a resolver sempre que nos dizem “Mãe, não tenho nada para fazer!” e morder a língua sempre que nos chega à boca um frase para corrigir o que estão livremente a criar, serão sempre boas premissas para respeitar a liberdade destes pequenos grandes inventores.

Estimular dias inteiros de brincadeira para todos.
Convidar amigos, dizer que sim a todas as festas do pijamas, deixá-los construir tendas tuareg no terraço ou combinar jogatanas de futebol no jardim, são ótimas ideias para deixar bem oleadas as relações com outras crianças que tanto lhes trazem a descobrir, desde a empatia, à resolução de problemas, à cooperação e a tantas outras competências que lhes serão bússola para toda a vida. Caso tenhas um grupo de pais pronto a alinhar nesta espécie de brincadeira comunitária, poderão até revezar-se nos programas ou aproveitar para juntar os miúdos e aproveitar o tempo para construir ou fortalecer os laços uns com os outros. Há pessoas interessantes por aí, sabes?

Aproveitar tudo o que de tão incrível existe à nossa volta.
E aqui falo da natureza e do potencial imenso que ela nos oferece. Uma criança não precisa de brinquedos complicados e muito menos precisa de brinquedos com pilhas que fazem tudo por ela. Aposto que já todos vimos bebés e crianças pequenas deliciados horas a fio com uma cesta de frutas, ou com um armário de tupperwares ou com uma poça de lama que dá para fazer bolinhos e tudo. Pois é, e é só mesmo só disto que eles precisam. Ambientes ao ar livre que ofereçam vários elementos como terra, plantas e água, são ambientes que darão à criança um sem fim de coisas para fazer, estimulando-as a brincar de diferentes formas e a encontrar respostas diferentes aos diferentes desafios. Em casa, simplicidade é a palavra de ordem. Objetos para construir, caixas de areia, peças soltas como bocados de madeira, tijolos, pedrinhas, ou invenções a partir de elementos naturais como carimbos feitos com sumo de beterraba e rodelas de maça, serão sempre boas ideias que permitirão à criança manter viva e de boa saúde a sua capacidade ativa e criativa, permitindo-lhes também estimular todo um novo repertório de brincadeiras.

Chegados aqui, e mesmo sabendo que infelizmente hoje em dia isto dá algum trabalho, aposto contigo que vai valer bem a pena, não só agora, pela riqueza de tudo o que lhes proporcionarás, mas também pelo dia em que à pergunta: “O que mais te lembras da tua infância”, os teus filhos fechem os olhos, abram um sorriso e tenham um sem fim de histórias para contar…

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Eu, Rita.

Sou psicóloga e formadora com especialidade na área da saúde e da educação e trabalho como psicóloga escolar desde 2006, atividade que muito me preenche e me faz acordar todas as manhãs cheia de energia e vontade de continuar a aprender.

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