Fomos dar um passeio à zona ribeirinha.
Ao chegarmos, a maré baixa convidou-nos a descer as escadas e a sentarmo-nos numa pedra junto à água. Apanhámos búzios, vimos caranguejos e percebemos que havia zonas de lodo e zonas mais secas por onde poderíamos facilmente andar. O Manel continuou a explorar, encantado com a vida a fervilhar na ria, no lodo, nas algas deixadas pela última preia mar.
Numa das investidas, escorregou e encheu-se de lodo. Correu a mostrar-mo, demos uma boa gargalhada juntos e pediu-me para continuar a descobrir mais um pouco.
Enquanto o observava, deliciosamente parte daquele lugar, ouvi a seguinte frase ao longe,
– “Mas que raio de mãe deixa o miúdo andar ali?”
Duas senhoras, muito bem postas, vestidas com o fato de treino dos domingos e uns ténis muito branquinhos que nunca conheceram senão a brandura do asfalto, a suplicar (sem disso saber) por um bocadinho de vento ou de mar que lhes devolvesse a vida outra vez.
Foi isto que pensei, depois de uns segundos de raiva que quase me saltava da boca sob a forma de um “Não sabem as senhoras aquilo que perdem!”
Não o disse, mas vim com a frase a ecoar-me na cabeça e a fazer-me pensar no assunto, não sem antes me ter obrigado a mastigar e a cuspir a ideia que tantas vezes assalta as mulheres: Terei sido eu uma má mãe?
Olhei para o Manel e tudo o que vi foi um puto feliz, coberto de lodo da cabeça ao pés e a voltar para casa sem sapatos mas com o coração cheio de aventura e de liberdade.
Esta experiência levou-me a pensar naquilo em que transformámos a infância a partir do momento em que nos esquecemos de que a infância se faz de descoberta, de mãos na massa, de experiências, de espaço livre, de consciência de corpo nesse mesmo espaço.
A infância faz-se de risco.
E eu entristeço-me vezes demais, sempre que ao lado das senhoras bem postas vestidas com o fato de treino dos domingos, vejo crianças bem postas de fato de treino igual, a desconhecer que o corpo com que se movem é capaz de coisas tão extraordinárias como subir às árvores, saltar de pedra em pedra, apanhar caranguejos ou correr descalço.
Estamos mesmo a “criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável”, como disse um dia o fabuloso Carlos Neto. E a culpa é toda nossa.
Morremos de medo de que se magoem, morremos de medo de que se enganem, morremos de medo de que os magoem, e por fim, morremos de medo de que não precisem de nós.
Tudo isto faz parte do processo, até porque desde o momento em que lhes pusemos a vista em cima, deixámos de pertencer a nós mesmos e assumimos como nossa, a missão de os proteger para sempre. Tudo isto faz parte do processo mas é nossa a responsabilidade de não permitir que isto interfira com a sua saúde física e mental.
O medo dos adultos é talvez a maior barreira à autonomia de uma criança e uma verdadeira ameaça ao desenvolvimento de uma maior confiança em si e no meio envolvente. E os adultos de hoje são exímios nisto. Vivem presos a uma proteção excessiva e a um desejo mal disfarçado de crianças arrumadinhas, bem comportadas e muito limpinhas, que em tudo as distancia do potencial com que foram equipadas.
A curiosidade, a criatividade, a coragem, o sentido de deslumbramento são as ferramentas com que as crianças nascem para que possam, sabiamente, descobrir o mundo. E é precisamente esta descoberta que lhes permite conquistar uma crescente percepção sensorial e as competências de vida que um dia lhes permitirão crescer como adultos capazes, resilientes e autónomos.
A maioria das vezes em que impedimos os nossos filhos de explorar ou experimentar não representa perigo à sua saúde.
São os inocentes “cuidado que vais cair!”, ou os bem intencionados “não vás para aí que te vais sujar!” que, repetidos vezes a fio sem que deles tenhamos consciência, vão retirando à criança a capacidade de conhecer o seu corpo e os seus limites, de aprender a observar os contextos onde se move e a fazer ela própria a avaliação dos riscos com que se depara, adaptando-se, do ponto de vista motor e emocional, aos diferentes desafios. E isto tem um efeito precisamente contrário ao que pretendemos: torna as crianças mais desajeitadas, mais propensas a acidentes e menos capazes de se auto regular.
Crianças assustadas, pouco confiantes, progressivamente menos criativas, emocionalmente pouco seguras e com maior probabilidade de psicopatologia na idade adulta, é tão somente o cenário que estamos habilmente a construir e eu sei, que não é nada disto que desejamos, tão somente porque é em tudo contrário à promessa que firmámos em nós quando lhes pusemos a vista em cima.
E é por tudo isto e por saber, enquanto adulta e enquanto mãe, que é minha a responsabilidade de permitir ao meu filho crescer de uma forma inteira, saudável, emocionante e progressivamente mais autónoma, que eu agora já só queria que fôssemos muitos a borrifar-nos nos ténis branquinhos e a abrir caminho ao lodo, à terra, aos bichos, às árvores e a tudo o que de forma tão natural e tão fácil lhes é casa.
É isso afinal que lhes constituirá terreno fértil para construir e adubo bom para fazer crescer as sementinhas de tudo o que de tão incrível já trazem dentro.
E se assim isto te fizer sentido e se com isto alguém um dia te perguntar que raio de mãe és tu, sorri-lhe e responde-lhe que és um raio de uma mãe que ainda não se esqueceu do sabor que a liberdade tem…